A primeira vez que assisti O Selvagem da Motocicleta tinha uns 11 anos, foi em uma reapresentação no finado Cine Olaria, cinema que existia no bairro onde ainda moro. Apesar de ser um filme com restrição para menores, era bem fácil ter acesso a esse tipo de obra naquele cinema ou até qualquer outro. Eram outros tempos e não havia tanta preocupação assim com o que podia se aprender com um filme. Era bem comum o pessoal da onde morava freqüentar esse cinema, uma enorme sala, com um telão gigantesco e que cabia bem mais que 1000 pessoas, herança de uma época aonde as pessoas colocavam ternos e roupas de gala para visitar a sala escura. Não eram raras às vezes em que se via ela com boa parte de sua lotação tomada, não me esqueço à fila interminável que se formou quando por lá foi exibido E.T. Saudosismos a parte, lembro que essa obra do genial Francis Ford Coppola foi um dos primeiros filmes a realmente me chamar a atenção para concepção de filmes como algo artístico. Após o termino da sessão, voltando pelas ruas mal iluminadas do bairro, a sensação é que algo havia mudado dentro de mim, não era mais o mesmo, O Selvagem da Motocicleta tinha me envelhecido, me feito ver a vida por outra ótica, que não existiam somente queridinhos da mamãe como eu, que a vida era dura e muitas vezes sem significado e que uma alma poderia viver uma existência toda de conflitos consigo mesmo. É, Coppola me marcou de uma forma indescritível e por isso tenho uma relação afetiva muito especial com esse filme.
Escrever sobre esse filme sem ser emocional é quase impossível, a cada vez que revejo O Selvagem da Motocicleta minha admiração por essa obra cresce, talvez ela até tenha problemas de narrativa como alguns comentam, mas o misto de sentimentos e lembranças que ela ainda me provoca ainda é bem forte. Na época que descobri esse filme, mesmo com o baque que acusei, ainda era muito jovem e tinha pouco conhecimento ou discernimento para aproveitá-lo em sua plenitude, os simbolismos hoje em dia são mais evidentes e até acho o titulo no Brasil bem minimalista, a analogia do Motoqueiro (um Mickey Rourke mítico), ex-lider de uma gangue que agora vive por vagar sem destino, com o peixe de briga (Rumble Fish do titulo original) que surge colorido perante a visão daltônica preta e branca do personagem é perfeita. Com certeza o Motoqueiro é um personagem que vive em constante conflito consigo mesmo, como se pudesse brigar com sua própria imagem refletida no espelho, uma alusão com bastante propriedade de como um jovem pode ser incompreendido nas suas faltas de perspectivas e é genial que o Motoqueiro nem é o protagonista do filme, que vem a ser o seu irmão Rusty James (Matt Dilon em seu melhor momento), um limitado jovem deliquente que idolatra o irmão. Então, entra uma das outras perspectivas amplamente visitadas por Coppola em suas realizações: o conflito familiar, porque nesse quadro distopico temos a figura do Pai alcoólatra vivido por Dennis Hopper que facilmente estaria representando a ele mesmo. A aura lírica e mágica, mesmo que melancólica, que envolve os personagens é o que talvez mais crie empatia com o expectador, difícil não se identificar ou mesmo sentir pena em algum momento daqueles rapazes.
Bom, se não bastasse todo o clima sentimental que envolve O Selvagem da Motocicleta, a realização ainda é repleta de cenas antológicas, como na seqüência inicial em que Rusty se envolve em uma briga, sendo esfaqueado e o Motoqueiro aparece de forma triunfal e o salva da morte arremessando a motocicleta de forma sensacional no algoz de seu irmão ou quando Rusty após levar uma surra de criminosos, tem uma experiência de quase morte em que vê sua projeção astral visualizar a si mesmo e viajar pela cidade visitando o futuro recente de seus amigos ou na criação dos sonhos eróticos que Rusty tem com sua namorada vivida por uma lindíssima e sensual Diane Lane ou mesmo ainda no triste e poético epilogo, quando o nome do Motoqueiro fica marcado para sempre no imaginário de quem o conheceu. Definitivamente, essa é uma produção que pode ser mesmo dita que tem “alma”, e isso aliado a uma fotografia em preto e branco primorosa, uma trilha sonora jazzística intimista e um elenco coadjuvante de jovens e talentosos atores em sintonia vividos Nicolas Cage, Laurence Fishburne, Tom Waits e Chris Penn fazem por fim de O Selvagem da Motocicleta a lenda que merece ser.